Transcrição parcial da entrevista publicada na Folha de São Paulo - 09-11-2019
"Quando Pierre Lévy, 63, começou
a escrever sobre cibercultura, a internet toda era mato. O filósofo franco-canadense é
um dos pioneiros a tratar da relação entre sociedade e computador, em
particular num mundo conectado. Orgulha-se de escrever sobre o assunto desde o
começo dos anos 1990.
Para ele, as ciências humanas
precisam passar por uma revolução, como passaram as naturais, e a tecnologia é
a chave para atingir um “patamar mínimo” no tratamento dessa área. “Nas
humanidades ainda estamos na Idade Média”.
Sua teoria passa por inteligência
coletiva, aquele conhecimento acumulado e compartilhado por toda uma espécie ou
grupo. Pode ser pela organização de animais como formigas, que trocam
informações entre si, mas ganha força em seres humanos, com a capacidade de
usar a linguagem —linguagem esta, diz, potencializada pelas tecnologias de
comunicação.
“Em
vez de desenvolver máquinas inteligentes [com inteligência artificial],
deveríamos usar os computadores para nos tornar mais inteligentes”, contesta.
O filósofo quer reorganizar o
conhecimento humano. Trabalha numa linguagem artificial que faria humanos
conversarem diretamente com máquinas sem o intermédio da programação.
Em 2020, pretende lançar um
livro explicando a gramática da nova língua (sem data e editora definidos) e,
depois disso, se aposentar. “Para mim, aposentadoria é só não dar mais aula e
ter mais tempo para escrever.”
Lévy nasceu na Tunísia, mas
desenvolveu sua carreira acadêmica na Universidade Sorbonne, na França. A
partir deste semestre, será pesquisador da Universidade de Montreal após 17
anos trabalhando na Universidade de Ottawa, ambas no Canadá, onde vive desde
1998.
Falou à Folha por cerca
de 50 minutos em videochamada, sempre em tom espirituoso —ria, fazia vozes,
caras e bocas— e com as malas já prontas para vir ao Brasil. Participará do
Fronteiras do Pensamento, em Salvador, nesta terça-feira (10).
Hoje, vivemos em um mundo extremamente conectado. Temos computadores em
todos os lugares. O que isso muda para a sociedade?
[Risos] Muda muito! Para mim, a chegada de
computadores pessoais, depois, a internet, o smartphone e por aí vai,
transformam o sistema de comunicação da nossa sociedade. Acho que a primeira
grande revolução na história da comunicação foi a invenção da escrita, que
levou a uma sociedade mais hierarquizada, dividida entre aqueles que sabem ler
e escrever e aqueles que não sabem. Então houve uma segunda grande revolução, a
invenção do alfabeto, dos algarismos arábicos com o número zero e a invenção do
papel pelos chineses. Depois houve a invenção da imprensa e, na sequência,
rádio e televisão. Essas invenções automatizaram a transmissão de linguagem e
de símbolos.
Cada vez que temos grandes
transformações no sistema de comunicação, temos uma transformação na cultura e
na civilização. E estamos atualmente nesse estágio porque em nosso novo sistema
de comunicação toda informação é acessível. É onipresente. Todas as pessoas
estão interconectadas, o que é ainda mais importante. E, acima de tudo, temos
robôs que são capazes de automaticamente transformar símbolos, como fazer
traduções ou cálculos estatísticos. Isso é completamente novo.
Aconteceu no espaço de apenas
20 ou 30 anos. É muito difícil pensar no que serão as implicações dessa mudança
na comunicação, mas estamos apenas no começo dessa nova civilização.
Seu trabalho discute o
conceito de inteligência coletiva. Poderia explicar o que é?
[Risos] Sempre essa pergunta! A inteligência coletiva
é algo muito velho, de antes da espécie humana. Abelhas, por exemplo, acumulam
mel para elas próprias e para a comunidade toda. Formigas conseguem sinalizar
entre si onde estão as coisas boas para comer. Comunicação, coordenação e
colaboração entre animais sociais é muito frequente. Isso é ainda mais forte
entre mamíferos e, claro, primatas. Nós somos primatas e animais sociais, então
temos essa habilidade de inteligência coletiva, mas temos algo que os outros
animais não têm: linguagem.
Linguagem permite que nós
acumulemos conhecimento de geração para geração e serve para criar novas formas
de coordenar e cooperar, muito mais complexas do que no mundo animal.
Então,
cada vez que nós somos capazes de empoderar nossa habilidade linguística, por
exemplo com o desenvolvimento da escrita, dos meios de comunicação em massa e,
agora, com a comunicação digital, nós aumentamos nossa inteligência coletiva.
Para mim, inteligência coletiva
é um projeto na era digital que é quase o oposto de inteligência artificial. Em
vez de usar computadores para desenvolver máquinas inteligentes, deveríamos
usar os computadores para nos tornar mais inteligentes. É claro que não sou
contra o aspecto técnico de inteligência artificial, mas acho que o objetivo
geral não deveria ser inteligência artificial, mas inteligência coletiva.
Já podemos ver esse aumento da
inteligência coletiva. Inteligência é nada mais do que habilidade cognitiva.
Memória é uma das mais importantes dessas habilidades. Há muita memória em
comum que está à disposição de todos. Podemos aumentar nossa memória [com o
conteúdo disponível digitalmente], nossa capacidade racional, por exemplo, ao
analisar todos esses dados que estão na rede. Podemos aumentar nossa habilidade
de coordenar e colaborar, por exemplo, pelo uso de redes sociais. Não só para o
público geral, mas também para empresas, governos.
Inteligência coletiva humana
está amarrada à internet e às máquinas?
Sim,
mas a biblioteca era a forma antiga de memória coletiva. A internet é a nova
forma.
Em vez de ter palavras escritas
com tinta em papel, você tem códigos digitais que não são totalmente materiais,
é claro, mas que têm que estar em um computador em algum lugar. A quantidade de
informação e qualidade da memória são melhores e é acessível de todo lugar. O
que falta é a habilidade e educação para tirar o melhor dessas possibilidades.
O que seria tirar o melhor
dessas possibilidades?
[Risos] Esse é
o ponto central da nova educação. Você tem que aprender a controlar ou
gerenciar sua atenção corretamente. Você precisa poder categorizar os dados
corretamente, avaliar a confiança que pode dar para fontes de informação, ser
capaz de comparar diferentes fontes. E tem que aprender a se comportar numa
inteligência coletiva para trabalhar com outros a fim de transformar todo esses
dados em conhecimento.
Isso
é só uma visão geral, está bem? [Risos]. São papéis novos que precisamos
ensinar para nossas crianças.
E onde entra o big data nesse
contexto?
É a nova forma de memória.
É um problema enorme essa pergunta [risos]. Digamos que o uso de estatística é,
muito frequentemente, por meio de amostras da realidade que queremos estudar.
Hoje, nós não usamos amostras da realidade que queremos estudar. Temos toda a
realidade representada por um mar de dados. Uma vez que temos essa
extraordinária disponibilidade de dados que são gerados por todas as interações
entre pessoas, por todos os sensores, economia, tudo o que fazemos online. Tudo
gera dados. Agora, você tem o problema de o que faremos com isso e como
extraímos conhecimento útil deles.
E é toda a metodologia
científica que está em jogo aqui. Não acho que a estatística sozinha seja o que
a gente precisa. Sim, precisamos de estatística, mas antes precisamos
categorizar corretamente todos os dados. Temos que ter hipóteses, modelos
causais e precisamos de estatística para testar nossas hipóteses.
É um tipo de reprodução do
método científico, mas não só para os cientistas, mas para todos. Para
estudantes, professores, comerciantes, políticos. Todos. É só o começo desse
problema de transformar dados em conhecimento.
Como isso é um problema não
só para a ciência, mas para todos? A produção de conhecimento não é mais ligada
à academia?
Sim. No mundo velho
[risos]. Porque temos acesso a esses dados e porque também temos acesso a todos
os algoritmos que
podem nos ajudar a extrair sentido desses dados, esse trabalho que
tradicionalmente era dos cientistas se torna o trabalho de todos. Todo o mundo
usa big data, então todos estão encarando problemas epistemológicos mesmo se
não se dão conta disso.
E como a linguagem
artificial IEML (sigla em inglês para Metalinguagem da Economia da Informação)
se encaixa nessa história?
[Risos]. A
IEML é uma língua, como português ou francês, que tem a característica de ter
semântica computável e de ter significado unívoco [cada palavra significa uma
coisa só, sem ambiguidade]. Então você pode fazer computação com ela.
As linguagens naturais são
muito irregulares. Hoje, os algoritmos são capazes de entender a linguagem
natural, mas só com cálculos estatísticos. Com IEML o significado é diretamente
acessível e pode ser usado como um sistema semântico universal. Ele faria a análise
de big data e a extração de conhecimento de dados muito mais fácil do que
quando os dados estão categorizados em linguagem natural. Porque línguas
naturais são irregulares e, além disso, são diversas.
A ideia da IEML é oferecer
operabilidade semântica para dados, algoritmos, raciocínio automatizado...
Interconectar tudo e fazer melhores traduções.
Uma linguagem para fazer a
conexão entre humanos e máquinas?
Exatamente.
É criada para ser uma linguagem que máquinas conseguem entender, porque é
completamente regular, matemática. Mas pode ser traduzida em línguas naturais
para que humanos consigam entender, diferente de uma linguagem de programação
que é apenas feita para dar instruções para uma máquina. No IEML você pode
descrever tudo o que quiser e é compreensível para um computador.
Pode dar um exemplo de uma
frase construída em IEML? Como funciona?
[Risos] Não consigo dar um exemplo. Você pode falar para seus leitores
acessarem intlekt.io e eles poderão ver um dicionário de IEML como exemplo.
Nele, estão morfemas, unidades de linguagem com o significado descrito, e todos
os significados são interconectados dentro do dicionário. E aí você usa regras
gramaticais, sem exceções porque são regras regulares, para construir palavras,
frases e textos a partir dessas unidades.
IEML é uma forma de navegar pelo conhecimento coletivo? De organizá-lo?
Sim. É também a língua da
inteligência coletiva. Se quisermos ter uma inteligência coletiva real,
primeiro temos que poder nos entender através das barreiras de diferentes
idiomas, ou de diferentes tradições culturais. Até entre disciplinas: às vezes
um especialista de uma área não entende o de outra. É a primeira ponte que
temos que construir.
A segunda ponte é ajudar
pessoas e máquinas a se comunicarem melhor. Hoje, só cientistas de computação
ou programadores que conseguem falar diretamente com o computador. Se todos
puderem fazer isso, vai melhorar muito a inteligência coletiva.
Quero dizer que isso é um
projeto de pesquisa muito fundamental e que eu não estou vendendo ferramentas.
Estou tentando atrair pesquisadores e indústrias, talvez governos, para essa
ideia. Eu acho que criei a fundação teórica desse projeto, mas ainda não
existem ferramentas. Acho que provei que a ideia tem valor. Agora, para criar
ferramentas reais, precisaria de poder industrial, que eu não tenho. Sou apenas
um filósofo.
Quão difícil seria criar
ferramentas?
É difícil. A parte
teórica, creio, já foi feita. Vou publicar em 2020 o livro explicando a
gramática de IEML. Aí vou ter feito a minha parte.
Vai se aposentar?
Sim. Para mim, aposentadoria é só não dar mais aula e
ter tempo para escrever livros.
Falando em livros, o sr. é
um filósofo bem popular, particularmente na França. Seus livros vendem. Como vê
a popularização da filosofia?
Acho
que é bom. Quanto mais pessoas interessadas e lendo filosofia, melhor.
Precisamos de reflexão racional, perguntas, curiosidade. Não só nas ciências
naturais, mas também em questões humanas: economia, política, sociologia,
pedagogia. Tudo que é humano.
Na
Europa, há essa tradição na qual filósofos são figuras públicas. E há a
tradição americana na qual filósofos são especialistas que ficam no
departamento de filosofia e ninguém lê os livros deles, tirando os colegas.
Gosto das duas. É bom às vezes poder fazer trabalho técnico que o público geral
não vai ler. Não espero, por exemplo, que leiam meu próximo livro sobre IEML
porque é bem técnico.
E já que tocamos no assunto,
acho que a grande revolução científica que está na nossa frente é nas ciências
humanas. Porque já fizemos a revolução das ciências naturais, mas para as
humanidades ainda estamos na Idade Média. É só por meio do uso de todos os
dados que estão disponíveis, com todo o poder computacional e usando
ferramentas como IEML para categorizar os dados, e expressar fatos e teorias de
forma rigorosa, que poderíamos alcançar um patamar mínimo no tratamento
científico das humanidades.
Que patamar é esse?
Não teríamos mais 25 disciplinas científicas
diferentes e incompatíveis nas humanidades. Não teríamos mais 50 teorias [para
um mesmo assunto] e cada teórico abraçado com ela. Hoje, não conseguimos nem
fazer uma lista das coisas sobre as quais discordamos. Não é assim nas ciências
naturais. Todos concordam no número de átomos, com a gravidade. Nós não
concordamos em nada nas ciências humanas. Não podemos fazer progresso se não há
um consenso e acumulação de conhecimento.
Tecnologia e comunicação
digitais são a chave?
Sim. A chave
enquanto ferramenta. Mas temos que fazer trabalhos intelectuais e sociais para
fazer bom uso dessas ferramentas. Não será mágica.
Como o sr. vê o futuro dessa
sociedade digital e conectada?
Vamos
começar falando sobre o que não vai acontecer [risos]. Duas coisas não vão
acontecer. Primeiro, todo problema ser resolvido pela tecnologia. Isso nunca
vai acontecer. Sempre vão surgir novos problemas. Não será o paraíso. A segunda
coisa é que não vai ser o inferno. Os robôs não vão assumir o poder. É
simplesmente impossível.
Nossa civilização vai evoluir
de forma que é difícil de prever. Vamos pensar nos romanos, por exemplo. Eles
eram muito inteligentes, mas você acha que eles conseguiriam prever o que seria
uma usina nuclear? A internet? Era impossível imaginar na época.
O
que quero dizer é que a civilização futura é impossível dessa forma de
imaginar, para nós.
Talvez não pensando tão
longe no futuro. Quais os impactos para daqui a cinco ou dez anos?
Reluto em fazer previsões. Quando escrevi
"Inteligência Coletiva" em 1994, não queria fazer previsões. Eu
falava de um projeto de como usar as novas tecnologias digitais para aumentar a
inteligência coletiva. Ainda estou nesse projeto.
O que
adiciono ao que disse há 25 anos é que nossa inteligência coletiva tem que ser
reflexiva. Temos que poder observar, entender e corrigir nossa operação
cognitiva e nossa colaboração cognitiva. É um processo de reflexão. Ser capaz
de observar cientificamente nosso processo de inteligência coletiva.
Inteligência coletiva já acontece, mas acontece no escuro. O que eu quero é
trazer um pouco mais de luz a esse processo e disso que se trata IEML. Observar
o significado dos dados, das interações entre as pessoas. O que estamos fazendo
juntos, uns aos outros e ao planeta."